tragedia amazonica






A série de reportagens
“Uma tragédia Amazônica – Peça em três atos”,
de autoria de Raimundo Rodrigues Pereira,

que começamos a publicar hoje, registra o início da parceria entre o Nocaute e a Editora Manifesto. Um dos mais completos jornalistas de sua geração, Raimundo trabalhou nos mais importantes veículos brasileiros e foi criador e editor dos jornais “Opinião” e “Movimento”,
símbolos da luta contra a ditadura militar.

A série “Uma tragédia Amazônica…” traz os bastidores da guerra pela preservação do maior pulmão verde do planeta.

Peça em três Atos
ATO 1

Que trata da ignorância e da estupidez

No dia 19 de julho passado, num café da manhã com jornalistas estrangeiros, o presidente da República, Jair Bolsonaro, referindo-se a artigos na imprensa sobre o desmatamento da Amazônia cuja origem são números colocados na internet por programas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), fez várias afirmações contundentes: “A questão do INPE, eu tenho a convicção que os dados são mentirosos e nós vamos chamar aqui o presidente do INPE para conversar sobre isso e ponto final nessa questão”.

“Mandei ver quem está à frente do INPE. Até parece que está a serviço de alguma ONG, o que é muito comum.” “Se for somado o desmatamento que falam dos últimos dez anos, a Amazônia acabou. Eu entendo a necessidade de preservar, mas a psicose ambiental deixou de existir comigo”-



As falas do presidente refletiam um misto de estupidez e ignorância. O presidente do INPE, Ricardo Galvão, como disse em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo um dia depois da fala de Bolsonaro, tem “71 anos”, “48 de serviço público”,  está “ainda na ativa” e “nunca” teve qualquer relação com ONGs, “nunca” recebeu mais do que seu salário como servidor público. E mais do que isso, não se intimidou com os ataques: “Na verdade ele (o presidente) faz (a acusação) em duas partes. Na primeira, ele me acusa de estar a serviço de uma ONG internacional. Ele já disse que os dados do INPE não estavam corretos segundo a avaliação dele, como se ele tivesse qualidade ou qualificação de fazer análise de dados.” Uma coisa é Bolsonaro, como presidente eleito, “que respeito”, disse Galvão. Outra coisa é o seu comportamento público. “Em entrevistas com a imprensa ou mesmo em outras manifestações, ele tem um comportamento como se estivesse em botequim”. E acrescentou: “ele fez acusações indevidas a pessoas do mais alto nível da ciência brasileira, não estou dizendo só eu, mas muitas outras pessoas”. 


As grosserias do presidente contra o cientista refletiam também sua ignorância a respeito do assunto. Como disse Galvão: “Esses dados sobre desmatamento da Amazônia, feitos pelo INPE, começaram já em meados da década de 70. A partir de 1988 nós temos a maior série histórica de dados de desmatamento de florestas tropicais respeitada mundialmente.” 

O INPE tem dois sistemas básicos para monitoramento dos desmatamentos da Amazônia. O Prodes e o Deter. O Prodes é o mais antigo. Desde 1988 ele mede as áreas da Amazônia desmatadas pelo chamado corte raso das árvores, com eliminação completa da cobertura vegetal, e essa medição é usada pelo governo para o estabelecimento de políticas públicas. Seus dados são usados, por exemplo, nos termos de “ajustamento de conduta” para a conservação de áreas cobertas previstas no Código Florestal em terras do agronegócio. E também nos acordos internacionais relacionados com a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas e com as Doações de Países Estrangeiros para o Fundo Amazônia, destinado a apoiar projetos para a exploração sustentável da região. 




A primeira medição do Prodes é apresentada em dezembro de cada ano, com o total de desmatamentos estimado para o ano. Os dados consolidados saem no final do primeiro semestre do ano seguinte. Os referentes a 2018 saíram preliminarmente em dezembro.
E, no início de julho deste ano saíram os dados consolidados. Eles mostram que foram desmatados no ano passado – por corte raso, ou seja, com retirada total da cobertura florestal – 7.536 quilômetros quadrados da floresta amazônica.
É muito, ou pouco? É uma área pequena em relação ao tamanho da grande floresta – menos de dois décimos de milésimo dos seus cerca de 4 milhões de quilômetros quadrados atuais.  Mas não é desprezível: é como se um incêndio gigante tivesse destruído em um ano uma área bem maior que a do território do Distrito Federal, que tem 5780 quilômetros quadrados. E o que é pior: o desmatamento voltou a crescer. No gráfico com o número de quilômetros quadrados de desmatamento anual feito com a série de dados do Prodes, se vê que a situação já foi muito pior, com desmatamentos de sempre mais de 10 mil quilômetros quadrados por ano e picos de desmatamento entre 20 mil e perto de 30 mil quilômetros quadrados por ano entre 1988 e 2004. Mas, no mesmo gráfico se vê, no entanto, que o desmatamento vinha caindo progressivamente, desde o máximo de 27.772 quilômetros quadrados desmatados em 2004, para menos de 5 mil quilômetros quadrados desmatados em 2012. Desde então, vem aumentando. E o mais estranho em nossa história é que a revolta do presidente contra os números do desmatamento, não visa os números fornecidos pelo Prodes. Visa os números do outro sistema operado pelo INPE, o Deter, de alertas de desmatamento da Amazônia em tempo real, criado em 2004 para agilizar as ações de confirmação no local e de repressão aos desmatadores.

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O Deter, diga-se a bem da verdade, criado em 2004, por iniciativa de técnicos e dirigentes do governo Lula, entre os quais deve-se destacar a então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva é considerado a peça essencial para a queda no desmatamento citada há pouco, dos quase trinta mil quilômetros quadrados de desmatamentos de 2004 para os 4.571 quilômetros quadrados de desmatamentos de 2012.
Ressalte-se ainda: Bolsonaro se rebelou contra a divulgação pela imprensa dos dados do INPE de um programa cujos resultados são públicos há 15 anos! No início de julho os jornais publicaram que os alertas de desmatamentos do Deter, na comparação de abril de 2018 contra abril de 2019, mostravam um aumento da área atingida, do ano passado para este ano, de 27%; e na comparação de junho de 2018 contra junho de 2019, um aumento maior das áreas atingidas, de 90,8%.
Como disse Galvão ao Estadão ainda como presidente do INPE: o Brasil começou a receber dados para acompanhamento do desmatamento da Amazônia há mais de 40 anos, em meados dos anos 70 do século passado, a partir do programa de satélites Landsat, dos americanos. Atualmente, o INPE utiliza uma mistura de imagens das versões mais atuais dos satélites americanos de tipo Landsat, dos satélites lançados pelo programa sino-brasileiro de pesquisa espacial CBERS (em inglês, China Brasil Earth Research Satellite), além de imagens de satélites de programas de pesquisa espaciais da Índia e da Inglaterra. Além do mais, os alertas de desmatamento não são fornecidos pelo INPE diretamente. Como explicou Falcão na entrevista citada, os dados são fornecidos ao Ibama. “Isso começou ainda na gestão da ministra Marina Silva (2003-2008) por demanda do próprio Ministério do Meio Ambiente, que ela então dirigia. Os dados são acessados pelo Ibama na nossa página na internet. Mas estão abertos para todo mundo. São publicados em revistas científicas internacionais. Então, chamar isso de manipulação é uma ofensa inaceitável”.





 “A raiz do problema”, é o título do gráfico que ilustra o artigo do Economist, edição de 3 de agosto último. Ele dá, nos últimos 30 anos, ano a ano, os números, em milhares de quilômetros quadrados da área desmatada da floresta amazônica. Cada mil quilômetros quadrados equivale a 140.000 campos de futebol, esclarece a revista.

E, por último, ainda neste capítulo, é preciso ressaltar o que diz e repete o INPE, oficialmente, em seu site. “O DETER não é um sistema de medição do desmatamento da Amazônia. É um levantamento rápido de alertas de evidências de alteração da cobertura florestal na Amazônia”. Ele foi desenvolvido para apoiar a “fiscalização e controle de desmatamento e da degradação florestal” a serem realizadas pelo IBAMA) e demais órgãos de governo com essa função. “O DETER captura apenas parte das alterações ocorridas, devido à menor resolução das imagens e dos sensores utilizados e as restrições de cobertura de nuvens. Em vista dessa cobertura de nuvens ser variável de um mês para outro, a comparação entre dados de diferentes meses e anos obtidos pelo sistema DETER deve ser feita criteriosamente. Os dados do DETER podem, ainda, incluir processos de desmatamento ocorridos em períodos anteriores ao do mês de mapeamento, mas cuja detecção não fora possível antes por limitações de cobertura de nuvens. É preciso distinguir entre o tempo de ocorrência e a oportunidade de detecção que é dependente do regime de nuvens”.
O Deter é, diz o INPE, um sistema em evolução. De maio de 2004 a dezembro de 2017, ele operou com base nos dados de sensores com os quais era possível detectar apenas alterações na cobertura florestal com área maior que 25 hectares. Devido ao fato de a Amazônia ser uma região muito úmida e frequentemente coberta por nuvens nem todas as alterações da cobertura vegetal são identificadas pelo DETER. Em agosto de 2015 o INPE começou a operar também uma nova versão do DETER, com capacidade de resolução maior, capaz de identificar e mapear, em tempo quase real, desmatamentos e demais alterações na cobertura florestal com área mínima próxima a 1 hectare. O INPE repete ainda que seu “número oficial” para “medir a taxa anual de desmatamento por corte raso na Amazônia Legal brasileira é fornecido, desde 1988, pelo projeto PRODES”. A despeito de todas essas advertências oficiais do INPE para que não sejam usados os números do Deter para fazer comparações mensais ou anuais de desmatamento, foi isso o que fez o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, cerca de duas semanas depois da diatribe do presidente contra o INPE para os jornalistas estrangeiros, numa espécie de pronunciamento oficial da presidência da República, com a presença de mais dois ministros – o das Relações Exteriores, Eduardo Araújo e o da Segurança Institucional, general Augusto Heleno – e sob o comando do próprio presidente Jair Bolsonaro. É o que se verá no próximo Ato dessa tragédia.
(A série uma “Uma tragédia amazônica” será publicada também por Manifesto Jornalismo,  revista impressa, com a qual Nocaute está desenvolvendo uma parceria).






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